WASHINGTON FAJARDO destaca o papel das ciências urbanísticas na construção da cidade mais real e menor utópica “Queria trazer para vocês a perspectiva de alguém que trabalha a cidade sob o ponto de vista de seu valor histórico”, pontuou Fajardo, logo no início de apresentação, em que fez uma crítica à ideia de utopia, jogando luz sobre a ciência urbanística, que, para ele, “ainda está na sua forma inicial”, fazendo uma analogia aos primeiros experimentos de colocar a imagem em movimento, feitos no início do século passado pelo fotógrafo inglês Eadweard Muybridge. “A forma desenvolvida e mais bem acabada do planejamento urbano ainda está para acontecer porque a gente ainda está conhecendo e entendendo a cidade e seus movimentos”, comparou o arquiteto e urbanista, presidente do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade, órgão da Prefeitura do Rio para o patrimônio cultural do município. Com os pés fincados na realidade, Fajardo recorreu a dados diversos e concretos para falar sobre a complexidade de problemas e soluções para uma cidade como o Rio de Janeiro, de escala metropolitana. E concentrou sua análise na região central da cidade, teoricamente tida como região consolidada, segundo o Plano Diretor, mas que guarda vários desafios para a administração municipal, que poderiam ser mais bem avaliados, monitorados e resolvidos se houvesse, por exemplo, mais pessoas morando no Centro, em seus sobrados bem conservados e subutilizados para este fim. Fajardo fez uma ponte entre o passado da cidade o momento de transformação pelo qual o Rio e seus moradores estão passando neste momento, com as mudanças urbanísticas profundas na região central, com a derrubada da Perimetral, por exemplo. “A gente vai ter uma mobilidade nova no Centro do Rio com o VLT, que vai circular por essa nova frente marítima, podendo aumentar a coesão entre os espaços culturais do Centro. É uma oportunidade boa para a cidade, e traz uma perspectiva nova para nossa relação com a cidade”, defendeu Fajardo, lembrando que a ideia do Rio como cidade de praia surgiu no século 20, com a ocupação da região litorânea. “Até então, era uma cidade de porto, dedicada à Baía de Guanabara, à sua vida histórica e cultural”.
Mais ciência e menos utopia para lidar com a cidade conectada a outras cidades e com fluxo de informação contínuo, manejar uma cidade da dimensão do Rio de Janeiro exige esforço. “O ato de atravessar uma rua envolve o esforço coordenado de 18 órgãos diferentes: o que pinta a faixa de pedestre, o que pavimenta a calçada, o que faz o calçamento da rua, o que planta a árvore, o que poda, o que faz a iluminação pública, o que planeja os sinais, o que controla o trânsito, o que cuida da segurança… E por aí vai. As cidades funcionam dessa maneira, há bastante tempo no mundo. É preciso aumentar o conhecimento sobre como isso é gerenciado”, disse Fajardo, que insistiu bastante na necessidade de criar mecanismos de gerenciamento e monitoramento do planejamento urbano da cidade – uma questão complexa, e nada utópica. Para ele, as tecnologias de informação têm papel fundamental para o conhecimento maior da cidade e sua gestão – e, segundo ele, o uso de todo o potencial desses recursos tem sido muito maior no campo, em áreas rurais, onde drones controlam maquinário e as tecnologias de geo-referenciamento são muito mais avançados que no espaço urbano. “A cidade produz na gente uma soberba sobre conhecimento e nossa onipotência, e isso é falso”, disse Fajardo.
Fajardo fez um histórico sobre viver nas cidades, um processo iniciado há seis mil anos, que envolveu um aprendizado sobre controle de território, infraestrutura, recursos hídricos, que encontrou seu momento de explosão no final do século 19, com a industrialização. É o momento de crescimento absurdo das cidades e da consequente necessidade de ordenar o espaço, em função do adensamento demográfico, quando surgem as ciências urbanísticas, para equacionar os problemas que iam surgindo. “A ideia de embelezamento, do território belo, surge a partir daí”, diz. Barcelona, Paris e Viena são exemplos de soluções de cidade que surgem e influenciam o mundo inteiro – inclusive o Rio de Janeiro. O desenvolvimento amplia a vida da cidade: com a luz elétrica, a cidade passa a poder existir 24 horas por dia. “Outros valores vão surgindo, como o conforto, a mobilidade, as questões sociais, até a gente começar a tratar a cidade como um conteúdo próprio”, historiou Fajardo, apontando para uma semelhança cada vez maior entre as cidades, num futuro bem próximo. “As cidades do planeta serão muito mais parecidas em 2030 com as latino-americanas, africanas e asiáticas”, disse, mostrando as projeções sobre crescimento populacional mundial. “Os nossos desafios serão os desafios do mundo”, acredita o convidado, para quem o Rio de Janeiro tem qualidades e, por isso pode ter um papel interessante para responder a esses desafios, “de maneira não utópica”. “Isso atrapalhou muito a gente na nossa história”, sentenciou. “A melhor cidade que existe é a cidade que existe”, diz, rejeitando a ideia de que “a melhor cidade está num plano utópico”. “A cidade que a gente já tem hoje é plena de soluções para as questões econômicas, sociais e culturais”, acredita. “A gente não valoriza a cidade que temos, porque acreditamos que a que vamos fazer é melhor”, critica.
Velocidade e amplitude: o carro na origem do plano da cidade “O plano que mais influenciou as cidades no século 20 tinha na sua origem a ideia de dar espaço para o carro e nenhuma outra cidade como a nossa acreditou de uma maneira tão intensa nisso”, disse Fajardo, referindo às propostas de reforma de Paris, feitas em 1923 pelo arquiteto franco-suíço Le Corbusier, no chamado Plano Voisin, apontado como fundador do pensamento urbanístico no século 20. Amigos de Santos Dumont, os irmãos Voisin, empresários industriais, faziam… carros. “A gente fez nossa cidade dessa maneira e trouxe dois valores territoriais importantes: a ideia de velocidade e a de amplitude”, citou. “São valores presentes até hoje e a gente acha isso bom, e isso vira capital político. Quero questionar essas duas ideias”.
Para demonstrar o que dizia, Fajardo apresentou o plano criado por Reidy para a Esplanada de Santo Antônio, onde fica a Avenida Chile, com edifícios de autarquias da então capital da República. Fajardo aponta problemas de gestão urbana daquela região. “Da Escola de Música da UFRJ até a Rua da Carioca são 930 metros sem fachada. Como você gere um lugar que não tem fachada, que não tem pessoas?”, pontua. É preciso questionar conceitos para discutir a cidade com suas questões contemporâneas. Sendo assim, Fajardo, em vez de falar sobre transporte público prefere adotar a expressão mobilidade sustentável, que inclui a ideia de diferentes tipos de transporte para o deslocamento pela cidade. “Do ponto de vista econômico, a gente também fala no plano utópico: a gente acredita no pré-sal de maneira absoluta para resolver todos os nossos problemas, o que não vai acontecer. Há uma trama de negócios urbanos que duram 100 anos, como pequenos bares e restaurantes, e a gente não presta atenção neles”, comparou, lembrando que a prefeitura desenvolveu com o Sebrae uma série de iniciativas voltadas para esse tipo de pequeno comércio tradicional, que resiste no tempo.
Planejamento ou agenciamento urbano: novas abordagens sobre a cidade “Esse raciocínio utópico e funcionalista da cidade não é só dos urbanistas: a sociedade brasileira aderiu a ele, desejamos isso para nossa cidade. Esse valor organiza a lógica de planejamento urbano. Arquitetos e urbanistas, historicamente, ainda reptem que é isso que vai resolver as cidades. Planejamento urbano é o meio pelo qual a gente pode chegar a gente pode chegar a algum resultado. Então a gente precisa falar do resultado, que é produzir uma boa cidade. E o que é uma boa cidade? Na hora que a gente desloca o foco do debate sobre planejamento urbano e não está discutindo a boa cidade, a gente não sabe onde quer chegar, ou chega nesses momentos funcionalistas que acho equivocados e que têm influenciado ainda nossa lógica urbana. Nós estamos ainda bebendo na fonte da utopia sobre as cidades e acho isso muito perigoso, porque a gente não olha para a cidade boa que a gente já tem”.
Para Fajardo, partindo do princípio que a cidade já tem qualidades, a questão é como fazer para cuidar dela, de seus diversos pequenos problemas, num “manejo de sistema complexo”. Citou, por exemplo, a possível destinação de sobrados do Centro do Rio para moradia, o que poderia melhorar a vida da região, onde imóveis em bom estado de conservação são subutilizados, mantidos vazios pelos proprietários. Moradias no Centro poderiam ajudar a melhorar os cuidados com o Centro. “A gente precisa ter uma visão sistêmica sobre a realidade da cidade”, diz, explicando o que define como “agenciamento urbano”, que é a criação de metodologias para lidar com a cidade que existe.
O urbanista insistiu nas medidas práticas para solução de problemas complexos da cidade, no lugar das ideias mais teóricas – e utópicas. “Uma rua organizada é uma rua boa para todo mundo”, resumiu. “Entendo que a gente afasta esse tipo de valor se pensa na cidade apenas na lógica do planejamento urbano e não do agenciamento urbano”, disse. Outro valor importante citado por Fajardo é do que ele chama de “andabilidade”. “A gente fala pouco disso, que é o valor de andar na cidade, e ainda não trata a calçada como uma infraestrutura necessária”, disse, ressaltando que as calçadas são lugares de encontro importante para a vida da cidade.
São problemas práticos cuja discussão é necessária para a construção de uma cidade melhor. “Por causa do pensamento utópico, a gente esquece rápido. E lembrar é importante”, disse, referindo-se às soluções adotadas na região portuária, que passa por intensa transformação, e onde foi feito um esforço para garantir naquela área espaço também para moradia. Citou também outras iniciativas no Centro que foram tomadas para atrair e aumentar a circulação de pessoas, como a retirada das grades da Praça Tiradentes, e a retirada da Perimetral. “Esse é um trabalho muito importante. Nossa relação com a Baía de Guanabara era muito cômoda: a gente passava de carro, dentro do ar condicionado, ouvindo música, e olhava distante para ela, sem relação com esse meio natural, que a gente tem quando anda do lado. Antes, a gente só tinha contato com a Baía por pouco mais de 200 metros, na área do Cais Pharoux (na Praça 15). Agora, isso vai aumentar para cerca de 3km, e isso é muito. Da mesma maneira, do ponto de vista econômico, a gente começou a reconhecer negócios tradicionais, como pequenos bares e restaurantes tradicionais, como patrimônio importante”, contou Fajardo, que encerrou a apresentação citando uma frase famosa de Shakespeare, na tragédia Coriolano: “O que é a cidade senão as pessoas?”