Vulnerabilidade, criminalidade e violência policial

Orlando Zaccone D’Elia Filho, delegado de policia civil / Foto: Marco Sobral

Orlando Zaccone D’Elia Filho, delegado de policia civil / Foto: Marco Sobral

Três perguntas permearam o debate no Rio de Encontros: Como as forças policiais podem conciliar a garantia da ordem e da segurança com o direito à participação democrática? Por onde começar a mudar a estrutura da segurança pública no Rio de Janeiro e no Brasil?

A experiência do delegado Orlando Zaccone D’Elia Filho vai bem além da polícia. Mestre em Ciências Penais pela Universidade Cândido Mendes, é doutorando em Ciência Politica pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Secretário-geral da LEAP Brasil (Agentes da Lei Contra a Proibição) tem no currículo o livro o livro “Acionistas do nada: quem são os traficantes de drogas”. Na carceragem de Nova Iguaçu, ele transformou celas improvisadas e apinhadas de gente em lugar onde os presos podiam ler e fazer filmes.

A designação de delegado pensador ele carrega há tempos. “Pensar o papel da polícia na sociedade é resgatar o que a polícia sempre fez. Ser um policial pensante é um primeiro passo para mudar a experiência da relação da polícia com a sociedade no Brasil. Polícia tem de ser crítica”, ele defendeu, para começar a conversa.

A polícia civil no Brasil, Zaccone lamentou, está passando por um sucateamento, evidência de um processo político. “Não tem xerox na Academia de Polícia Civil. Uma polícia que não pensa está cada vez mais atrelada a interesses políticos e mais distante da sociedade. Nós deveríamos buscar uma parceria da polícia com a sociedade para reforçar o pensamento crítico”, conjecturou.

A letalidade do sistema penal

A letalidade é alta no Brasil e a polícia, por sua vez, também mata muito. Zaccone usou dados de pesquisa divulgada pela Anistia Internacional para confirmar o que esmiuça em sua tese de doutorado:

“A Anistia revelou que, em 2011, em todos os países que mantêm a pena de morte – são 20 dentro do marco legal –, 676 pessoas foram executadas. Nesse mesmo ano, os policiais brasileiros mataram 961 pessoas somente nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Foram cerca de 40% a mais do que todas as execuções feitas nos 20 países que mantêm a pena de morte, exceto a China, que estava fora da contagem. O Brasil não tem a pena de morte como regra”, realçou.

As mortes se dão a partir do despreparo da polícia? Zaccone diz discordar dessa tese. Segundo ele, há uma política na gestão da decisão sobre a vida e a morte.

“A mortalidade se dá a partir de uma forma jurídica. Instaurados os autos de resistência, eles são arquivados três anos depois. Essa letalidade a partir de ações policiais está à margem ou dentro do direito? A morte praticada a partir da ação policial é ou não legítima?”, ele questionou. Uma de das hipóteses que levanta é a de que as próprias instituições reforçam a letalidade. A própria imprensa tem sua cota, segundo ele. “Quem lê a manchete ‘Polícia mata traficante’, passa a enxergar isso como ação legítima. A mídia diz que polícia mata inocente, o que significa que outros podem matar”, explanou.

A questão passa a ser quem é o morto. “Todo auto de resistência é voltado a fazer uma investigação da vida do morto. É quase um inventário moral. Assim é composta a maioria dos autos de resistência”, afirmou ele, que trabalha com categorias como inimigo e vidas matáveis para tentar entender a letalidade. “Centrar na má formação policial não nos faz avançar para a compreensão do problema. A forma jurídica dos autos de resistência nos ajuda a entender a legítima defesa no Brasil. O inimigo é o traficante de drogas. Culpabilizada e desqualificada a vítima, ela passa a perder o estatuto de proteção jurídica”, Zaccone foi categórico.

Vulnerabilidade e criminalidade

O Rio de Janeiro é o estado com maior índice de mortes decorrentes da ação policial, Zaccone apresentou mais números: a mortalidade, em 2007, chegou a 1330. Foram 961, em 2011. Trata-se de uma letalidade legitimada política e juridicamente.

“As polícias civil e militar são consideradas as mais violentas do mundo, mas é preciso ampliar o olhar. Trabalho com o conceito do professor Eugenio Raul Zaffaroni (autor do livro A Palavra dos Mortos), que diz que não podemos ver essa letalidade na forma do genocídio. A questão é difícil de ser trabalhada porque esse é um conceito criado com motivação política. Crimes de guerra e políticos não são considerados genocídios. Então se criou um conceito que não concentra a totalidade. O conceito de massacre, segundo Zaffaroni, é um homicídio múltiplo, não entram aí os casos de assassinatos isolados que não sejam resultado de uma prática sistemática”, explicou.

Ainda com os dados em mãos, Zaccone citou que, em 2012, foram registrados 465 autos de resistência no estado do Rio. O número caiu 70% em relação a 1997. Mas permanece nas alturas e não justificado.

“Essa redução drástica é tida como resultado da pacificação implementada pelo governo do estado com as UPPS. Correto? Questiono. Nós estamos tentando voltar para os marcos históricos. Em 1993, pouco mais de 150 pessoas foram mortas pela polícia. Em 1996, foram 390. A partir de 2000 começa uma curva ascendente. Justamente quando se instalam as polícias cidadãs. E isso é um problema. Desde que o governo federal passou a ter um olhar para os espaços segregados e entramos no tema da vulnerabilidade, o olhar é criminalizante”, ele avaliou.

O que se tem é resultado direto, de acordo com Zaccone, da vinculação entre criminalidade e vulnerabilidade. “A violência policial nesses espaços aumentou a partir desses links. Pobre é potencialmente criminoso, é isso que significa dizer que nessas áreas a violência é mais possível.

Matriz violenta

No próprio ambiente social, diz o delegado, se constrói a ideia de que algumas pessoas são desprovidas de cidadania. “Criminoso identificado como inimigo perde o direito à cidadania, o que gera ambiente de matabilidade”, afirmou.

A questão violência, polícia e direito à cidade, portanto, não deve envolver somente a polícia, Zaccone reiterou que o Brasil é uma sociedade punitiva cuja origem estaria na escravatura. “É diferente no Uruguai e na Argentina. Nós voltamos pouco à escravidão. O Holocausto tem importância histórica na Alemanha, por exemplo. A escravidão é uma marca no Brasil que pode caracterizar a nossa matriz violenta. Não é só a polícia. Nós precisamos olhar para essa questão e aprofundar o debate”, defendeu.

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